Hoje é o Domingo da alegria (« Gaudete »). Mais uma vez encontramos a figura de João Baptista que S.Lucas sublinha particularmente ao mostrar ao mesmo tempo a sua grandeza e a sua inferioridade, ou melhor, a sua subordinação a Jesus. A grandeza de João é precisamente não fazer sentido, a não ser em relação ao Messias cuja vinda há-de preparar. No Domingo passado, com João Paulo II, tivemos a oportunidade de olhar para ele, como sendo o modelo dos catequistas. Por altura do grande Jubileu do ano 2000, dizia-lhes :
« Na pessoa de João Baptista, encontrais hoje os sinais fundamentais do vosso serviço eclesial. Em frente dele, ficais animados a efectuar uma verificação da missão que a Igreja vos confia ». Quem é João Baptista ? Antes de mais nada, é um crente empenhado pessoalmente num caminho espiritual exigente, feito duma escuta atenta e constante da Palavra de salvação . Além disso, é testemunha dum estilo de vida desprendido et pobre ; mostra uma grande coragem ao proclamar a todos a vontade de Deus, até às consequências mais extremas. Não caí na tentação fácil de desempenhar um papel de primeira, mas humilia-se para exaltar Jesus.
Hoje, João Baptista apresenta-se como modelo dos Apóstolos e dos Mensageiros que o Senhor manda « por grupos de dois diante dele por todas as vilas e localidades aonde ele próprio queria ir » (Lc, 10, 1). Os Apóstolos são doze, os enviados do capítulo 10 de S. Lucas são setenta e dois . Portanto, João é só e único, o primeiro duma multidão. É o mestre da sua aprendizagem. Ao mandar os Doze, e depois os Setenta e dois, é como se Jesus lhes dizesse :
« Agora, é a vossa vez de fazer como fez João Baptista para mim ! João formou-vos, caros João e André ! Agora, fazei como ele fez. Ele já está no céu ; agora sois os sucessores dele, sois a continuação dele. Sereis vós também os meus pequenos precursores. O que foi João, vós o sereis por vossa vez ! » (Padre Daniel-Ange)
Os Apóstolos repetiram isso àqueles que escolheram para continuar a missão recebida. Tito, Timóteu e os demais. Se os Apóstolos são o « tipo » do pregador, João é o « protótipo ».
Para nos limitar ao trecho do evangelho que acabamos de ouvir, eis os pontos essenciais da pregação de João Baptista, que são de salientar.
Em primeiro, João é um pregador universal. A missão dele vale para todos os tempos e todos os países. Ele fala para todos, não só para uma categoria de pessoas. S.Lucas mostra bem isso ao enumerar os vários grupos de pessoas que fazem sempre a mesma pergunta : » O que é que devemos fazer ? » (cf. Ac 2, 37 : é a mesma pergunta que será provocada pela pregação de Pedro, no dia de Pentecostes, quando está reunida uma multidão vinda de todo o Império). Há em primeiro « as multidões » sem precisão, a gente do povo ; a seguir, os « publicanos », empregados dos impostos, odiados pelo povo, mais do que os fiscais de hoje, uma vez que colaboravam com os « ocupantes romanos » ; afinal, os soldados, pouco amados também, pois a profissão deles era interdita aos Judeus, (talvez eram mecenarios pagãos, ao serviço de Herodes Anttipas). É verdade, « qualquer homem verá a salvação de Deus » (v. 6) !
A pregação de João atravessa os séculos e as fronteiras. Não tem nada de comum com a espiritualidade dos « Essénios » (= os « filhos da Luz »-, uma seita que se julgava a fina-flor da espiritualidade do tempo e que tinha fugido o « mundo mau », proclamando que só eles haviam-de ser salvos. Nada a ver também com os « fariseus » (= « os separados») que, apesar de não irem para o deserto, viviam num desprezo total para com aquela « escória » de pecadores. João só foi para o deserto afim de melhor se preparar para ir aos pecadores de toda a espécie.
É de notar também que João, apesar de viver como um asceta rigoroso, não começa por impor exigências muito severas aos que vêm a ele. Não lhes pede para comer como ele, nem para se vestir como ele. Mas, por outro lado, não gostava de mediocridade. Não ! Não julga a moral como coisa de pouca importância, especialmente no que diz respeito ao dinheiro, o « nervo da guerra ». Notastes como, na sua resposta à pergunta « O que é que devemos fazer ? » só fala no uso correcto da riqueza (v. 10-1111) e no perigo de se tornar rico injustamente (v. 12-13 ; 14) ?
Pelo contrário, não pede para mudar de profissão, nem aos publicanos sequer, nem aos soldados. S.Lucas não fala aqui nas prostitutas que não aparecem… Aos « pornocratas » de hoje, João teria ,com certeza, respondido outra coisa ! Além disso, que teria dito a todos quantos olham o dinheiro como seu deus, sacrificando tudo afim de obter lugares « imortantes » e obter promoções profissionais, ao preço de muitos sacrificios, incluido o tempo devido a Deus (por exemplo, a missa dominical) bem como à sua família ?
Coisa importante para o nosso tempo : a sua moral não é só uma moral individual (ou individualista). A pregação dele dirige-se a grupos de pessoas , à profissões, ao Povo de Deus na sua totalidade, à sociedade toda. A conversão exigida não é só a das pessoas na sua individualidade. Tem uma dimensão social.
O ecrã entre o homem e Deus, escreve o cardeal Daniélou, não é só a má vontade individual ; é também ume espécie se « sedimentarização » sociológica constituida por um conjunto de costumes e de compromissos, tanto mais difícil de conhecer que tem um carácter colectivo.
« Toda a gente faz assim »… Desculpa bonita ! A palavra de João, hoje, se dirige por exemplo aos polícias, aos guardas-republicanos, aos militares, bem como aos « pequenos » e grandes roubos, aos juizes e aos advogados, aos sindicalistas como aos empresários. Dirige-se à multidão dos cristãos que vivem na tibieza. Dirige-se também à totalidade da sociedade que, aos poucos, se tem « mediocrizada », a todos quantos, na Martínica e noutros lugares, adoptaram como palavra de ordem : « Débouya pa péché » (o que quer dizer na lingua da Martínica : « O desembaraçar-se não é pecado »), mediante algumas excepções por um lado, um compromisso por outro lado, com algumas pequenas cobardias… e generosidades do mesmo tamanho. Mas quando se trata de prestar serviço, de assumir uma responsabilidade para o bem comum, de responder a uma chamada ao socorro, então, de repente, já não se « desembaraçam », mas encontram, isso sim, muitas desculpas para fugir…
João faz uma chamada que soa como que um grito de alarme ao ver aquela multidão enorme que não espera por isso e se arrasta na sua existência medíocre no momento em que vai ter que se encontrar frente ao esplendor deslumbrante, maravilhoso, ardente da Glória (Daniélou).
João não impõe nada, não tem medo de propor. Não obriga, mas desperta ímpetos de conversão. Consegue encontrar falhas no muro de betão armado que nós elevamos para nos tornar impermeáveis às propostas do Amor misericordioso do Cordeiro. Não desanima diante do revés e da adversidade. Não tem medo de desagradar, pois não quer agradar. Continua correndo até ao fim. A sua pregação é suave e violenta ao mesmo tempo. A sua cólera só é o outro lado do amor. Desaparece diante de Cristo, mas a humildade dele não o impede de falar com autoridade.
Assim, João há-de denunciar sem cessar a vinda do Inimigo, o mal presente. Mas sempre e só com o fim de anunciar, de proclamar, de testemunhar.
Hoje, mais do que nunca, neste princípio do milenário, os profetas precisam dessa coragem, para diagnosticar o mal, dar nome ao erro, avisar do perigo, estigmatizar o inimigo, descobrir os seus ataques e afastar os seus estratagemas. Isso faz parte do papel de « araúto de verdade » no qual João é o nosso Mestre.
A Misericórdia não se terá batido de mãos nuas contra o Ódio, para arrancar os seus filhos às garras dele ?
Hoje mais do que nunca temos que gritar para salvar as crianças e os jovens de todo aquilo que os destroí, os perverte, os mata….. Caso contrário ficaremos com sangue nas mãos. (Pe Daniel-Ange)
João-Baptista, servidor da nossa alegria ? Sim, mas não duma alegria fácil, da alegria de Deus. É mesmo a alegria da Encarnação redentora. Peçamos aquela graça ao Senhor por intercessão de João-Baptista, e rezemos para que os pregadores do Evangelho sejam, como ele, ao serviço da verdadeira alegria de todo o povo : « Dirige a nossa alegria para a alegria dum Mistério tão grande … » (oração da abertura da missa).