O trecho do evangelho que lemos hoje pertence ao « must » da Bíblia .Ele é objecto universal dum plebiscito para fazer parte do « best of » dos evangelhos, (para utilizar mais um anglicismo). Fica presente em todas as memórias, é muito citado, a maior parte das vezes a torto e a direito, porque nunca fizeram o esforço necessário para escutar verdadeiramente o que Deus nos quer dizer naquela palavra. Sabe-se mais ou menos que se trata do verbo « amar », e a partir daí utilizam-no para lhe dar sentidos contrários, sem hesitação alguma. Isso é prático, rápido e serve para dizer tudo e o contrário de tudo… mas nunca se toma o tempo da escuta real, e a gente fica com a sua fome : isso não alimenta um homem. É mesmo igual, espiritualmente, ao « mal-comer ». Escutar e amar, amar e escutar, amar escutar, escutar para amar : os dois verbos têm que ser conjugados juntos .
Toda a gente sabe que é questão de amar… mas amar o quê ? mas amar quem, exactamente ? Comecemos por notar que a palavra pertence a um diálogo entre Jesus e um escriba judeu de quem Jesus vai dizer que não está longe do Reino de Deus. Isso é bastante raro , sobretudo quando se trata dum escriba, e num contexto destes : por isso, vale a pena olhar, pelo menos rapidamente.
No capítulo 11, e no princípio do cap. 12, S.Marcos fala numa série de discussões entre Jesus e as autoridades religiosas, começando pelo episódio dos vendedores expulsados do Templo (11,015-17). ( Coisa pouco caritativa, conforme as ideias dos especialistas do « deposito-minuto do amor ». « Era sido melhor não dizer nada » dirão outros péritos do amor rápido ; « se a atmosfera se torna azeda, a culpa é dele ». De facto, a reacção dos sumos sacerdotes e dos escribas chega depressa : « Procuravam a maneira de o mandar matar » (v.18). Mas esquece-se de sublinhar o amor de Jesus para com a casa do seu Pai, que deve ser uma « casa de oração para todas as nações ». Quando encontram Jesus novamente no Templo, os sumos sacerdotes, escribas e anciãos lhe pedem por que autoridade se atreve a fazer tais coisas (v.28). A resposta de Jesus é a parábola dos vinhateiros homicidas (12, 1-12). Os seus adversários percebem que Jesus fala deles (e é verdade !), então o sonho deles torna-se obsessão : « procuram fazer preso Jesus, mas tiveram medo do Povo » (V.12). A seguir, mais ataques, agora velados, da parte dos fariseus, dos herodianos, dos saduceus, de toda a parte : começam por um cumprimento, mas esse não passa duma armadilha afim de o obrigar a falar. « Será permitido, sim ou não, pagar o imposto ao imperador ? » (v.14) e o que é que acontecerá na ressurreição à mulher aos sete maridos sucessivos : de quem a mulher há-se ser a esposa ? (v.18-27)
Nessa atmosfera pesada e azeda é que se situa o episódio do evangelho de hoje. Eis enfim um homem bem disposto ! « Um escriba, que tinha ouvido a discussão e notado como Jesus tinha bem respondido, adiantou… » Jesus já pode respirar um bocado. Marcos só sublinha a boa fé e as boas intenções desse escriba (o que não fazem Mateus (22, 35) e Lucas (10, 25). Apesar de tudo, aquele escriba é uma excepção… mas ele manifesta que o judaismo se pode abrir à novidade de Jesus, o Amor encarnado.
E nós, sabemos conjugar o verbo « amar » como Jesus ? Falamos a mesma lingua ? Usamos da mesma gramática ? ou a mesma gramática nos parece estranha ? A pergunta não é só retórica. Tereis notado que, na sua resposta à pergunta : « Qual é o primeiro de todos os mandamentos ? » Jesus responde : «Eis o primeiro… Eis o segundo » ? E depois acrescenta : »Não há maior mandamento (no singular) do que esses (no plural) » O amor de Deus e o amor do próximo não são dois amores concorrentes ou contrários. É um mesmo e só amor.
Ora, nós, separamos o que Deus uniu. Às vezes, como os fariseus, pretextamos o amor de Deus para não cuidar do próximo. Neste caso, parecemo-nos com os escribas e fariseus, que prextavam as obrigações religiosas para não socorrer os seus pais : « E vós, dizeis : ‘Se alguém dizer ao pai ou à mãe : os bens com os quais te podia ajudar são corbane, isso é : oferenda sagrada’… E fazeis muitas coisas iguais » (Mc 7,011 ,13). Nesse caso, diz Jesus, « repelistes de verdade o mandamento de Deus para seguirdes a tradição dos homens » (v.8) S.Vicente de Paulo diz coisas maravilhosas sobre esse assunto…
Às vezes pretextamos o amor do próximo para não fazer a vontade de Deus. Em ambos os casos trata-se duma fuga que mostra bem que não temos percebido o que é o amor na sua essência. Só há uma caridade, com a qual amamos aDeus por causa d’Ele próprio, e os outros, e o universo inteiro por causa d’Ele. Amar aDeus por causa d’Ele, amar todas as coisas por causa de Deus, eis a única conjugação exacta do verbo « amar ». É impossível amar a Deus se não se ama ao próximo, mas o caminho mais curto para amar o próximo, é o que passa por Deus, pela Eucaristia, pela oração. Passar por Deus não é nenhum rodeio, uma perda de tempo, é o contrário !
Madalena DELBRÊL (1904-1964), cujo centenário acabamos de celebrar, mostra que é difícil amar o próximo quando esse é alguém que quer destruir em vós as coisas mais queridas. Em Ivry, cidade comunista, onde viveu durante 25 anos, havia pessoas a atacar aquilo por que teria dado a vida : a Igreja, a missa, a confissão. Então como amar tais pessoas ? Impossível, a não ser em Deus, pela oração.
A tentação moderna, a mais actual, é , sem dúvida, esta : « Fazer o bem para o homem », mas não para Deus (Ludwig Feuerbach, 1804-1872). Na sua obra principal, « A essência do cristianismo » (1841), aquele filósofo ateu, sem Deus, que vê em Jesus Cristo só um homem caritativo que deu a sua vida pelo próximo : « O momento mais importante da história virá quando o homem se tornar consciente que o único Deus é o próprio homem ».
Claudel diz algures que a tentação do homem moderno não é fazer o mal, mas sim passar-se de Deus para fazer o bem. Eis o cume do orgulho humano : querer mostrar que somos capazes de fazer o bem sem Deus, enquanto que Jesus disse : « Eu sou a vinha e vós os sarmentos. Quem permanece em mim e em que permaneço , aquele dá muito fruto, pois fora de Mim, não podeis fazer nada » (Jo 15,5) Está aqui uma espécie de desafio ateu : dizeis que se deve amar a Deus para amar ao próximo ? Pois bem, vamos mostrar-vos que, para fazer o bem, não é preciso de Deus. Mas, sem o Criador, a criatura desaparece (cf. GS 36), e mais tarde ou mais cedo, é a desesperança. « A criatura não se pode afastar do seu Criador sem se encontrar em vias que levam à destruição, à autodestruição » (Card.CH. Journet). « O grande acto de fé, é quando o homem confessa que não é Deus » (O.W.Holmes)
Então, verificais que a pegunta do escriba não é só uma questão académica, muito longe das nossas preocupações. Pelo contrário, é mesmo muito concreta e pratica. « Basta amar » : esse é o título dum livro sobre Sta Bernardete de Lurdes (autor : Gilbert Cesbron-1960), e também dum filme baseado sobre esse livro, realizado por Robert Darène (1961), título utilizado pelo « Jour du Seigneur » na Televisão francesa, para uma entrevista com a Irmã Emmanuelle. Mas o amor não é uma desculpa para evitar o que é difícil e humanamente desconcertante, também não é uma ausência de discernimento, nem um « alibi » pela cobardia e pela preguice .Um teólogo americano com quem estudei escreveu um livro sobre a hierarquia dos valores, uma noção muitas vezes mal percebida, como se algumas verdades de fé fossem negociáveis, ou menos verdadeiras do que as outras.
Este perigo existe também na moral. Da mesma maneira como a Santíssima Trindade é o mistério donde emanam todos os demais mistérios, e não o mistério diante do qual os outros todos desaparecem, da mesma maneira o amor é a virtude que arrasta todas as outras e não a que substitue as outras. O que é importante é ter consciência de que tudo está ligado, no dogma e na moral. O lugar da Virgem Maria está subordinado ao lugar de Jesus, mas se duvidamos da maternidade de Maria, tal como foi definida pelo Concílio de Éfeso,é mesmo a divindade de Cristo que se torna duvidosa. E se duvidarmos da divindade de Jesus, já não haverá mistério da Trindade. No domínio do agir cristão (a moral), é igual. S.Francisco de Sales diz que o amor é a rainha ; a fé e a esperança são as que servem. Mas nesta terra, aquela rainha não pode reinar sem as que servem.